AS SOCIEDADES SEM ESCRITA, EM BAGÉ: POSSÍVEIS INFLUÊNCIAS SOBRE A CULTURA LOCAL
Claudio Antunes Boucinha[1].
Introdução
Antes da chegada de Colombo, marco da Idade Moderna para certos historiadores, sem considerar outras presenças européias ou até mesmo egípcias e fenícias supostamente anteriores ao projeto espanhol, os habitantes que já viviam nessa parte da Terra foram, de maneira equivocada, chamados de índios, sem citar outros nomes inapropriados (o uso de termos como primitivos, em contraposição a civilizados, está em desuso pelo avanço da própria Antropologia que gerou esses mesmos termos).
Os habitantes que possivelmente habitaram a região de Bagé fizeram parte de culturas que não fizeram uso da escrita para seus registros, sociedades essas que enalteceram a memória oral, maneira específica de conservar suas origens e tradições.
Sobre essas sociedades sem escrita que habitaram a região do Rio Grande do Sul, vale a pena resgatar o tipo de tratamento historiográfico que era dado em 1936, para se compreender a maneira especulativa com que era tratada a questão:
“Elementos Formadores do Povo Rio-grandense. Três foram os elementos raciais formadores (...). O Indígena. Tupis guaranis, Gês e Guaicurus, predominando os deste último grupo, representados pelos Charruas e Minuanos, especialmente”. [2]
DOCCA afirma que predominavam os Charruas e Minuanos, mas não indicava fontes para comprovar tal afirmação. “(...) Os Minuanos e os Charruas tinham excepcional gosto pelas lides campeiras e um verdadeiro enlevo pelo cavalo.”
Charruas e Minuanos
“Em meados do século XVIII, com as primeiras invasões do território do Rio Grande do Sul, pelos espanhóis, começa a história da faixa da nossa fronteira em que está situado o atual (l914) município de Bagé. Na falta dum tratado que discriminasse os limites das possessões portuguesas e espanholas, nesta parte da América do Sul, viviam os seus habitantes em contínuas invasões das terras em litígio, donde se originavam constantes embates e conflitos, conservando-se aquelas populações numa verdadeira expectativa de paz armada. Para resolver esse estado aflitivo de coisas, os governos das respectivas metrópoles combinaram demarcar os limites das suas possessões pelo tratado de l3 de janeiro de l750. A comissão demarcadora, após percorrer a linha que medeia entre Castilhos Grande e Santa Tecla, teve de suspender os seus trabalhos no ano de l756, ante a hostilidade dos índios charruas e missioneiros, senhores das paragens onde hoje está situado o município de Bagé, que, armados e em grande número, apresentaram-se para combatê-la. Segundo o Mapa Etnográfico Histórico do Rio Grande do Sul, era a tribo dos charruas que predominava nesta parte da fronteira.” (...) Reza a crônica que o nome de Bagé proveio do “Ibagé”, velho cacique de uma tribo de índios “minuanos” que, nos fins do século XVIII, fixara suas “tabas”, no sítio em que está edificada a cidade. É uma tradição verosímil, porque de “Ibáge”, pela queda do “i”, obtém-se facilmente o nome de Bagé. Esta tribo dispersou-se, após a morte de seu chefe, que dizem foi sepultado no cume dum dos cerros próximo á cidade. [3]
Guenoas contra Missioneiros
“O atual município de Bagé teve seu primeiro contato com o homem europeu pelos fins do século XVIII – a data é incerta, oscilando de 1683 a 1690; o fato é que, após a fundação de São Miguel, um dos Sete Povos das Missões, os padres jesuítas avançaram até a região que hoje serve de divisa a Bagé e D. Pedrito, estabelecendo uma redução, que chamaram de Santo André Guenoas”. Os índios que os padres pretendiam catequizar ali eram por demais rebeldes ao branco, e, impermeáveis à fé cristã, expulsaram jesuítas e índios missioneiros, destruindo a redução”. ( ENCICLOPÉDIA DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS:RS. Volume 33. IBGE... 1959).
Ibagé, Índio Missioneiro
“Fazia parte das forças de São Miguel o índio Ibagé, ou Ipagé, que estabeleceu sua taba no cerro que tomou seu nome, dando o mesmo ao arroio que lhe corre aos pés; por corruptela, passou a ser chamado de Bagé.” ( ENCICLOPÉDIA DOS MUNICÍPIOS BRASILEIROS:RS. Volume 33. IBGE... 1959, p. 47).
A Conjuntura Historiográfica da Época
O MUSEU DOM DIOGO DE SOUZA, publicou a obra denominada de ANAIS DE BAJÉ, cujo volume deveria ser o “primeiro de uma série de publicações”; nessa primeira edição constavam trabalhos produzidos em função do BICENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE DOM DIOGO e do SESQUICENTENÁRIO DA FUNDAÇÃO DE BAJÉ, “respectivamente, em 17 de maio de 1955 e 17 de julho de 1961”. Eram teses, conferências, palestras e artigos de imprensa. (ANAIS DE BAJÉ. Série I. Número I. MUSEU DOM DIO DE SOUZA. Bagé, 1963, p. 7).
Pode-se considerar, portanto, que os textos publicados nos ANAIS DE BAJÉ não são necessariamente de 1963, mas de um período de sete anos, mais ou menos, que antecede à publicação da obra. Esta ressalva é importante na medida em que situa a conjuntura em que realmente os textos foram produzidos, o que poderia ser ignorada visto o ano de referência de 1963.
No caso, o primeiro texto a ser discutido é o de Mansueto Bernardi, inserido nos ANAIS DE BAJÉ, possivelmente uma reprodução de parte de um artigo publicado no jornal CORREIO DO POVO, de Porto Alegre, em 1958(no dia 1º de Março?). No jornal, o título do texto era: “O Índio Sepé e o Índio Ibagé”( grafado com a letra g); nos ANAIS DE BAJÉ, o título foi reduzido para “Índio Ibajé”( grafado com a letra j).
No artigo publicado no jornal CORREIO DO POVO, Mansueto Bernardi inseria a discussão sobre uma suposta presença de um índio na região de Bagé dentro de uma outra discussão: a do índio Sepé.
A Chegada dos Europeus na Região
A Escola históriográfica
fundada por Saldanha
No caso, o depoimento de José de Saldanha, feito com outro propósito, acabou por se tornar uma verdadeira escola historiográfica sobre as origens de Bagé, tanto pela qualificação de quem fez o depoimento, tanto pela contemporaneidade dos fatos apontados pelo depoente. Para Mansueto Bernardi, o depoimento de José de Saldanha é decisivo sobre o caso de um índio na região de Bagé.
Uma das questões levantadas sobre a existência de um índio heróico na região de Bagé, está exatamente a ausência de referências de Saldanha sobre tal indivíduo.
“Aliás, seria absolutamente impossível que os demarcadores de 1786-1787, andando, como andaram, pela região de Santa Tecla e Rio Negro, à cata de notícias sobre a origem da palavra Bajé, não tivessem obtido a mínima informação, observado nenhum indício, descoberto nenhum rastro, ouvido qualquer referência concernente ao índio Ibajé. Seu( dos demarcadores) silêncio a respeito seria deveras chocante e escandaloso, sobretudo se fosse verdade que Ibajé foi pajé ou cacique e que participou com algum relevo de diversas ações bélicas ali travadas anteriormente.”( BERNARDI, Mansueto. “Índio Ibajé”. In: ANAIS DE BAJÉ. Série I. Número I. MUSEU DOM DIOGO DE SOUZA. Bagé, 1963, p. 239).
“O engenheiro e naturalista José de Saldanha conhecia como ninguém, toda a geografia do Rio Grande do Sul, que percorrera palmo a palmo, inclusive a Província das Missões, da qual foi governador logo após a conquista. Conheceu e estudou não só todos os nossos acidentes geográficos, mas também a significação e origem dos seus nomes. Tudo está a indicar, por isto, que ele(José de Saldanha) botou o dedo na ferida, quando, explicando o sentido da palavra Bajé, diz que ela corresponde a monte, cerro, eminência, elevação cônica.” (BERNARDI, Mansueto. “Índio Ibajé”. In: ANAIS DE BAJÉ. Série I. Número I. MUSEU DOM DIO DE SOUZA. Bagé, 1963, p. 239).
“Felizmente, o filósofo, matemático, geógrafo, astrônomo e filósofo José de Saldanha, andando pelos anos de 1786 e 1787, nas imediações de Bajé e Batovi, teve ensejo de estudar ‘in loco’ a etimologia dessas palavras e a conclusão do seu estudo foi a seguinte: ‘Mbaiê, Cerros já descritos na derrota de 1786, cuja etimologia ou significado não se pode completamente achar, mais do que a primeira palavra, Mbai, que exprime, entre os Tapes, cerro, monte ou propriamente coisa que faz uma figura alta ou assim( e aqui desenha o autor – José de Saldanha – uma espécie de cone truncado); porém, do ê, nada se pode julgar. Eles(os Tapes) costumam juntar um M antes do b porque, quando (os Tapes) pronunciam o b, é com os lábios cerrados.’(SALDANHA, José de. Diário Resumido e Histórico da Demarcação. In: ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, volume 51; 1958, p. 202).”( Citado por BERNARDI, Mansueto. “Índio Ibajé”. In: ANAIS DE BAJÉ. Série I. Número I. MUSEU DOM DIO DE SOUZA. Bagé, 1963, p. 238).
O Rio Ibajé? Uma Vertente no Cerro?
“Daí(a origem, a partir desses argumentos apresentados por Saldanha), naturalmente, o topônimo Ibajé, isto é, o rio(?), o arroio, a água, a vertente que mana do sopé do cerro(?). Esta me parece ser a autêntica interpretação da palavra Bajé, fornecida pelos próprios Adões que batizaram o acidente , que foram os Tapes, interrogados em pessoa pelo demarcador.”( BERNARDI, Mansueto. “Índio Ibajé”. In: ANAIS DE BAJÉ. Série I. Número I. MUSEU DOM DIO DE SOUZA. Bagé, 1963, p. 239).
O Índio Sepé e o Índio Ibagé
(especial para o CORREIO DO POVO)
Mansueto Bernadi
FONTE: CORREIO DO POVO, Porto Alegre, 1º de Março de 1958( a data não está clara, no recorte de jornal encontrado na Biblioteca Municipal de Bagé, em pasta específica sobre a História de Bagé, embora o ano esteja corretamente anotado).
“Os inimigos do índio Sepé estão transbordando de júbilo cívico: descobriram um herói ainda infiel para contrapor ao corregedor cristianizado das Missões, alvo ultimamente de tantas objurgatórias.” Esse novo herói é o sedizente cacique Ibagé, que teria dado o seu nome à Rainha da Fronteira.”
(Como compreender essa polêmica entre o índio Sepé Tiaraju e o índio Ibagé? “No final da década de 1950, uma outra polêmica ocorreu no ambiente intelectual do Rio Grande do Sul, e Vellinho, assim como em 1925, foi um dos polemistas, dela participando intensamente. Discutia-se, agora(final da década de 1950), a heroicidade e a brasilidade, ou não, do índio missioneiro Sepé Tiaraju. Mansueto Bernardi contrapunha-se à opinião de Vellinho, e, em torno de cada um deles, formaram-se grupos.”( Gutfreind, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. 2ª edição. Porto Alegre: UFRGS, 1998).
“Quem era esse personagem, com o qual tanto se preocupam os irredutíveis adversários do primeiro caudilho rio-grandense, a ponto de o quererem introduzir, entre girândolas de foguetes e epinícios votivos, nos fastos de nossa História, com promessa de um futuro monumento? Convém examinar serenamente essa questão.”
“As informações que a História rio-grandense nos ministra acerca desse pretenso cacique ou pajé são muito poucas e muito vagas. Uns afirmam que teria vivido nos fins do século XVII, outros nos fins do século XVIII. Uns dizem que foi charrua, outros que foi guarani. Uns adiantam que combateu ao lado de Sepé na Guerra das Reduções, outros que ajudou os portugueses a expulsar os castelhanos dos Sete Povos, como aliado de Rafael Pinto Bandeira e Borges do Canto. Em que ficamos? A quem acreditar? Quem diz a verdade?”
“Vejamos o que a respeito prelecionam os entendidos. Otávio Augusto de Faria, no seu Dicionário Geográfico, Histórico e Estatístico do Estado do Rio Grande do Sul, cuja primeira edição é de 1907 e a Segunda de 1914, ao falar do município de Bagé, assevera que ‘o seu nome deriva de Ibagé, chefe de uma tribo de índios que aí habitou desde os fins do século XVII’. Hemetério Veloso da Silveira acentua, entretanto, que foi só depois de ... 1754 ( na Segunda metade, portanto, do século XVIII) que ‘uma tribo de índios charruas, tendo por chefe o índio Ibagé, estabeleceu sua taba à fralda do cerro, onde mana o arroio que, por corruptela do nome do cacique, até hoje(1954) é chamado o arroio de Bagé’: ‘Segundo o depoimento do major João Antônio Cirne, que ainda alcançou alguns dos primeiros povoadores do Município, era o índio Ibagé, hospitaleiro, afável, mais amigo dos portugueses do que dos espanhóis, protegendo aqueles quando iam para a Colônia do Sacramento. Mas, como todos os homens da sua raça, era bastante altivo, para submeter-se quer a uma, quer a outros dos pretendentes à conquista dos campos, considerados deles, aborígenes’. (Silveira, Hemetério Veloso da. As Missões Orientais e seus antigos Domínios. Porto Alegre: (editora?), 1909, pp. 634-635).
“Assalta-nos aqui a primeira dúvida. Teria o indigitado Ibagé vivido em fins do século XVII, como ensina Otávio de Faria; ou em fins do século XVIII, como registra Hemetério Veloso da Silveira? Uma diferença de cem anos, no terreno da história, não é brincadeira...”
(A polêmica entre os historiadores sobre a lusitanidade ou platinidade do Rio Grande do Sul, era do final da década de 1950. Mas as fontes, como indicadas por Bernardi(1958), são anteriores, do início do século XX. Essa atualização da pesquisa sobre o índio Ibagé, em 1958, com a polêmica entre os historiadores, significou um avanço efetivo do que já se sabia sobre o índio Ibagé?).
“Não tenho presente a História de Bagé, de autoria do Sr. Eurico Salis, mas, consoante resumos da mesma, que li na imprensa, esse historiógrafo adota a versão do índio Ibagé e perfilha a etimologia Ibagé-pagé-Bagé, presumindo, entretanto, que o tal índio não haja sido contemporâneo de Sepé, mas tenha vivido muito depois, isto é, ao tempo da invasão do Vice-Rei Salcedo e da expugnação do Forte de Santa Tecla, lá pelos anos de 1773-1776. Ainda, segundo essa versão, que cito fiado no que estamparam os jornais, só na Segunda metade do século XVIII é que o índio Ibagé se teria aliado aos portugueses, a fim de expulsar os espanhóis do território que hoje pertence ao Brasil.”( Bernardi, 1963, p. 235).
“Mais tarde, por corruptela – Ypagê, Ypagé, Ybagé, e Bagé, nome que passou a denominar o arroio, cerro e cidade fundada por Dom Diogo de Souza”. ( Salis, Eurico Jacinto. História de Bagé. Porto Alegre: Globo, 1955, p. 34). A obra de Salis (1955) possivelmente foi concluída no ano de 1952 ou até antes, pela indicações do Parecer do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, assinado por Afonso Guerreiro Lima, Eduardo Duarte, Othelo Rosa(em 20 de abril de 1952) e Guilhermino César( em 22 de abril de 1952); Parecer esse publicado na própria edição do livro de Salis(1955).
“Como se vê, não se afirma categoricamente, com provas nas mãos, que Ibagé houvesse combatido a favor dos portugueses; presume-se apenas, que haja combatido, mas isto em flagrante desacordo com Hemetério, o qual assevera que Ibagé nunca se submeteu ou aliou ‘quer a uns, quer a outros, dos pretendentes à conquista de campos considerados deles aborígenes’.” ( Bernardi, 1963, p. 235).
“ Certamente por esse motivo, o historiador Souza Docca, por via de regra tão dogmático em seus escritos, ao explicar a origem do termo Ibagé, esclarece ater-se no caso, apenas à voz da tradição. Eis as suas palavras: “Bajé – alt. de Ibajé, carr. De Ipajé, o rio do feiticeiro, do solitário. Em meados do século XVIII, vivia em um cerro próximo a atual cidade de Bagé um velho índio charrua, que não obstante viver isolado, era dócil, tratável e hospitaleiro, “segundo a tradição”, o que entretanto, não impedia que fosse temido e respeitado. O pequeno arroio que desce do lado oriental do cerro, onde o velho charrua tinha a sua oca, era então conhecido por Ibajé, segundo se lê em antigos documentos existentes no Arquivo Público do Estado”. (Souza Docca – “vocábulos indígenas na geografia rio-grandense”. – in R.I.H.G.R.G.S. – ano 1925, pg. 9).
“Como se vê perfeitamente, no que tange à existência e ao carater do índio em apreço, Souza Docca se limita a consignar o que reza a tradição, visto que de positivo nada se apurara até aquela data e nada se apurou até hoje. Esse autor reproduz aqui, com outras palavras, o que escreveu Hemérito, que , por seu turno, repetiu o que ouvira de uma testemunha, que dez haver conhecido alguns dos primeiros povoadores do município de Bagé, mas não afirma absolutamente que conheceu o índio Ibagé. Apenas ouvira dizer que era afável, hospitaleiro e que levava vida solitária.” ( Bernardi, 1963, p. 235).
“ Estamos por conseguinte, em pleno reino do consta, da conjectura, do diz-que-diz-que, dos cochichos das comadres, dos boatos dos filhos da Candinha.
Segundo a tradição oral, recolhida por Souza Docca e Heméterio, o índio Ibajé seria charrua. Mas, conforme outra lenda, recolhida pelo pesquisador e folclorista Walter Spalding o índio Ibajé seria guarani, teria pelejado ao lado de Sepé na Guerra Guaranítica e assistido mesmo à morte deste velho caudilho Tape nas margens do arroio vacacaí, em 1756.” ( Bernardi, 1963, p. 236).
“Quanto ao nome, “Ibahê” ou “Ibag-ê”, ainda segundo o mesmo autor, significaria “o que veio do céu”, isto é, o que apareceu nas proximidades da nascente do arroio, mais tarde denominado Bajé, vindo do Céu” (Walter Spalding – Três lendas da fronteira – Ver. Museu e Arquivo His. R.G.S. – n° 6, ano 1956).
“ Acentue-se de passagem, que Walter Spalding, se situa aqui por completo no terreno da lenda, sem o mínimo intuito de invadir o campo da História, tanto que começa a sua narrativa da seguinte forma: “ Havia – dizem – na serra de Santa Tecla uma tribo de índios que, apesar de não ser guerreira, nunca se juntou aos Povos das Missões Orientais do Uruguai, etc”. O escritor não pretende absolutamente relatar um fato histórico, desfia, sim, um conto de fadas, conta um caso para matar o tempo e entreter a imaginação. Nada mais.” ( Bernardi, 1963, p. 236).
“ Com aquele – dizem – ele varre, de saída, a sua testada em relação à realidade do fato. E fez muito bem em varrer, porquanto o único índio de nome Ibajé, que ocorre na História Rio-grandense, viveu e atuou noutra zona, sendo assim de todo impossível que tenha dado o seu nome a cidade de Bagé. ( Bernardi, 1963, p. 236).
“ Trata-se do cacique e corregedor do Povo de São João, chamado “Olegário Ibayé”, o qual sublevou a sua gente, quando, em conseqüência do Tratado de Limites de 1750, recebeu ordem de se transferir para o outra lado do Uruguai. Seu nome vem citado diversas vezes no Processo Diego de Sales, mandado instaurar em São Borja, pelo general D. Pedro Cebalos, em 1759, a fim de averiguar a eventual responsabilidade dos Jesuítas pela rebelião Guarani.” ( Bernardi, 1963, p. 236).
“ Nesse processo famoso, realizado com todas as formalidades legais, e no qual depuseram umas 70 testemunhas, entre pessoas de destaque da Missões e militares castelhanos, partícipes das duas campanhas, ficou apurada, sem sombra alguma de dúvida, a completa inocência das Filhos de Santo Inácio no tocante à insurreição dos Sete Povos, proclamando solenemente o governador de Buenos Aires, no final do processo, que tudo quanto alhures se afirmara e escrevera contra o procedimento dos Jesuítas não passava de “um puro tecido de enredos e embustes”.” ( Bernardi, 1963, p. 236- 237).
“ Demostra positivamente esse processo que Olegário Ibayé, ao receber a ordem de transmigração, se insurgiu contra a mesma, com outros cinqüenta companheiros, desrespeitou e maltratou o seu cura, incitou o povo à revolta contra os espanhóis e assim se manteve durante 30 dias, quando foi deposto pelos entreguistas e substituído na função de corregedor pelo cacique João Ibaré.” ( Bernardi, 1963, p. 236).
“ Em 1756, depois da chacina de Caibaté, foi transladado para Candelária, onde ao que parece, acabaou obscuramente os seus dias.
Nem uma palavra, nesse processo sobre possíveis incursões de Ibayé pela zona do Rio Negro, Santa Tecla e Vacacaí. Seja em 1754, seja depois, sendo certo, por conseguinte, que também não foi esse indígena que deu seu nome à cidade de Bagé.” ( Bernardi, 1963, p. 237).
“ Em face do exposto, creio não subsistir mais nenhum motivo para se lhe prestar homenagens... (para maiores detalhes, veja-se Pastells – Mateos – “Historia de la Compañia de Jesus en la Povincia des Paraguai” – Madrid, 1949, Tomo VIII, parte 1ª, pag. 504,527,528,591 e 594).
As mesmas dúvidas e contradições existentes a respeito da existência e dos atributos do índio Ibajé, ocorrem acerca da significação do seu nome.
Souza Docca diz ser alteração de Ipajé, como vimos. Walter Spalding, pensa que quer dizer – o que veio do céu.” ( Bernardi, 1963, p. 237).
“ No trabalho “O Tupi na Geografia do Rio Grande do Sul”, o general João Borges Fortes ensina que Bagé é corruptela de Pajé, o feiticeiro, o santão do gentio (Rev. I.H.G.R.G.S., ano 1939), ao passo que Tupi Caldas, em “Toponomia Tupi-guarani”, pretende que Bagé seja um vocábulo composto de bag – igual a – volta, volver o corpo e e – igual a – destreza, aptidão, habilidade, induzir (Rev. I.H.G.R.G.S., ano 1941).” ( Bernardi, 1963, p. 237).
“ O provecto Teodoro Sampaio pontifica que Bagé é corruptela de Pajé, o feiticeiro, o santão do gênio, tal como é Majé, acrescentando no verbete “Mair” esta complicada explicação a respeito : “ Mair – apelido dos franceses entre os tupis do Brasil. Os guaranis do Paraguai chamavam aos espanhóis “Mbai”.
Os dois vocábulos Mair e Mbai são formas contractas de Mabe-ira, que exprime o apartado, o solitário, o que vive distante. De “Mbae-ira” provém: “mbaira”, “maira”, “mair” e “mbai”. Estes apelidos davam os índios aos franceses e espanhóis, não só por virem de longe, como porque os equiparavam, pela sua superioridade, aos seus feiticeiros, chamados “pajé” ou “caraíbas”, os quais levavam vida solitária no recesso das matas, nas cavernas das montanhas distantes. O pajé era, portanto, um solitário (mair, mbai)”. ( Bernardi, 1963, p. 237, 238).
“De resto o vocábulo pajé procede do mesmo radical, pois é contração mbai-é, isto é, solitário de diversa natureza, o solitário sobrenatural. Do nome” mbaié “decorrem duas formas:” maié “que deu” majé “ou” magé “e” mbaié “, que deu” bajé “ou” Bagé “, de onde procede” pagé “(O Tupi na Geografia Nacional – 3ª ed. – Bahia, 1928 – p. 164 e 257)”.
“Como estamos vendo, pasmados, bagé não é mais uma corruptela de pajé. Este vocábulo é que procede de bajé ou bagé. A situação se inverteu por completo”.
Ora, se o índio Ibajé vivia como um solitário, um místico, um asceta, como explicar as suas andanças guerreiras, segundo uns ao lado de José Macelino de Figueiredo e Rafael Pinto Bandeira e, segundo outros, incorporado às hostes de Nheenguirú e Tiarajú? Outra incerteza aflora aqui: era ele cacique, morubixaba, tuxava ou era pajé, esto é, feiticeiro, santarrão, curandeiro, eremita, mago, mucker? As duas palavras tem sentidos bem diferentes. Convém distinguir. ( Bernardi, 1963, p. 238).
“Felizmente, o filósofo, matemático, geógrafo, astrônomo José de Saldanha, andando pelos anos de 1786 e 1787, nas imediações de Bagé e Batovi, teve ensejo de estudar” in loco “a etimologia dessas palavras e a conclusão do seu estudo foi a seguinte: “Mbaiê”, cerros já descritos na derrota de 1786, cuja etimologia ou significado não se pode completamente achar, mais do que a primeira palavra “Mbai”, que exprime, entre os Tapes, cerro, monte ou propriamente coisa que faz uma figura alta ou assim (e aqui desenha o autor uma espécie de cone truncado), porém do “ê” nada se pode julgar. Eles costumam juntar um “M” antes do “b”, porque quando pronunciam o “b” é com os lábios cerrados” ( José de Saldanha – Diário Resumido e Histórico da Demarcação – in Anais da Biblioteca Nacional, vol. 51, ano 1958, pg. 202.)
“ E depois de descrever o Cerro de Batovi, acrescenta: “Não há quem dê a cerdadeira etimologia a este Mbatobi; sabe-se somente que é pela figura alta e própria que os Tapes assim o chamavam, da mesma sorte que dessemos de “Mbayê”. ( Bernardi, 1963, p. 238).
“ No Mapa Corográfico da Capitania de São Pedro, elaborado pelo mesmo geógrafo e etnógrafo e que vem sendo apenso ao “Diário Resumido”, está consignado com toda a clareza o acidente orográfico “Serros de Bayê”.
O engenheiro e naturalista José de Saldanha conhecia, como ninguém, toda a geografia do Rio Grande do Sul, que percorrera palma a palmo, inclusive a Província das Missões, da qual foi governador logo após a conquista. Conheceu e estudou não só todos os nossos acidentes geográficos, mas também a significação e origem dos seus nomes. Tudo está a indicar, por isto, que ele botou o dedo na ferida, quando, explicando o sentido da palavra Bajé, diz que ela corresponde a monte, cerro, eminência, elevação cônica, etc.” ( Bernardi, 1963, p. 238, 239).
“ Daí naturalmente, o topônimo Ibajé, isto é, o rio, o arroio, a água, a vertente que mana do sopé do cerro. Esta me parece ser a autêntica interpretação da palavra Bajé, fornecida pelos próprios Adões que batizaram o acidente e que foram os Tapes, interrogados em pessoa pelo demarcador.” ( Bernardi, 1963, p. 239).
“ Em face dessa explicação lógica, natural, científica, originária, onde vai parar o façanhudo Ibajé? Evaporou-se como um farrapo de nuvem, desfez-se qual uma bola de espuma, ruiu por terra como um castelo de cartas ao peso de um pardal.
Bem nos advertiu o profundo tupinologo Padre A. Lemos Barbosa, no seu Pequeno Vocabulário Tupi-português, contra as fantasias etimológicas de certos glotólogos, que estudaram a língua geral brasílica.” ( Bernardi, 1963, p. 239).
“ Aurélio Porto, que meditou profundamente sobre este assunto, assevera, como Saldanha, que Bajé significa cerro, monte, elevação, sendo portanto, “erradíssimo” o radical, empregado por Sampaio ao topônimo Batovi, como corruptela de “iba-t-obi”a fruta verde ou “ibatib-i”, o rio do pomar aou canavial.
Borges Fortes impugna igualmente a interpretação de Teodoro Sampaio e julga que Batovi significa o Cerro Verde (veja-se “Terra Farroupilha” – pag. 17 e 18 ). Mbatovi tem o mesmo radical de Mabayê, isto é, cerro, monte, eminência, elevação isolada, solitária. Não tem, prtanto, nenhuma relação com pajé.” ( Bernardi, 1963, p. 239).
“ Alias, seria absolutamente impossível que os demarcadores de 1786 – 1787, andando, como andaram, pela região de Santa Tecla e Rio Negro, à cata de notícias sobre a origem da palavra Bajé, não tivessem obtido a mínima informação, observado nenhum indício, descoberto nenhum rastro, ouvido qualquer referência concernente ao índio Ibajé. Seu silêncio a respeito seria deveras chocante e escandaloso, sobretudo se fosse verdade que Ibajé foi pajé ou cacique e que participou com algum relevo de diversas ações bélicas ali travadas anteriormente.
O historiador e sociólogo Félix Contreiras Rodrigues, conhecedor como poucos da história de sua terra, aceitando embora a derivação corrente Pajé – Bajé, declara que a lenda do Cacique Ibajé “não tem nenhum fundamento histórico”, devendo, em conseqüência, ser relegada para o domínio da mitologia.
Em conclusão, o índio Ibajé – enquanto os seus apostologistas não lhe exibirem a certidão de nascimento, o atestado de residência e a fé de ofício – não passará de um vago e desengonçado lobisomem. ( Bernardi, 1963, p. 240).
Fonte: BERNARDI, Mansueto. “Índio Ibajé”. In: MUSEU DOM DIOGO DE SOUZA. Anais de Bajé. Série I; Número 01. Bagé: MUSEU DOM DIOGO DE SOUZA, 1963; BERNARDI, Mansueto. “O Índio Sepé e o Índio Ibagé”. In: CORREIO DO POVO. Porto Alegre, 1º de Março de 1958.
[1] Mestre em História do Brasil.
[2] DOCCA, Souza. “O Porquê da Brasilidade Farroupilha”. (Conferência Realizada no ‘Centro Gaúcho’, de São Paulo, à 20 de Setembro de 1936). São Paulo: Typographia Irmãos Clemente, s/d).
[3] LIMA, Vicente Lucas de. Relatório da Seção de Estatística. 1914.
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